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Por Rubem Braga
A Infantaria tem seus artilheiros – e resolvo fazer uma pausa numa viagem de duros solavancos para visitar uma peça na encosta de um morro. No instante em que me aproximo do canhão, vejo um soldado que está ao telefone dizer para outro que está junto da peça: “Por quatro.”
Dá, em seguida, as outras indicações – o meu princípio de conversa é interrompido por quatro disparos consecutivos de obus. Durante todo o tempo de minha visita, o obus disparou – e um obus 105 tem uma voz desagradável para ser ouvida de perto, embora eu calcule que seja mais desagradável ainda para os alemães que estão do outro lado do morro.
Atrás da peça está a barraca de lona onde dormem os homens, e vou para lá. Não é, positivamente, um modelo de conforto: um corredor central com duas fileiras de camas de campanha de cada lado. Como a barraca é pequena e os moradores são em número de nove, uma cama está encostada na outra. A única iluminação é uma lamparina a gasolina, que faz muita fumaça e pouca luz. Para canalizar essa fumaça, os homens fizeram uma enorme chaminé de canudos de papelão (invólucros dos obuses). Há um aquecedor a lenha. Quando o obus dispara, lá fora sai um jato de cinza do aquecedor, e se não há bastante gasolina, a lamparina se apaga.
Por acaso, chego para visitar os homens no dia em que registram (eu ia escrever “comemoram”, mas na verdade não houve comemoração de espécie alguma) o milésimo tiro disparado por aquela peça contra os nazistas. Isso aconteceu pela manhã; no momento de minha visita, à tardinha, a conta já estava em 1.066.
O chefe da peça é o sargento Aderaldo Alcoforado de Almeida (Rua 13 de Maio, 637, João Pessoa, Paraíba) e ele ri quando eu pergunto se não é possível parar com aqueles disparos uns 15 minutos para a gente conversar melhor.
__ Atrapalha? Questão de costume, A gente aqui dorme enquanto outra turma está atirando. Às vezes, de manhã, uma pergunta aos que ficaram de serviço durante a noite: “Vocês atiraram esta noite?”
Esclarece que o regime é de 24 horas de trabalho e 24 horas de descanso para cada turma.
Esses homens são do Regimento Sampaio: sua peça pertence à companhia de obuses desse regimento de infantaria. Quando pergunto que tal a vida por ali, todos respondem que não é muito interessante, mas também não é má. “Em comparação com a do infante lá na frente, é ótima” – se apressam a dizer. O cabo Geraldo de Sousa Veiga (Rua Borborema, 122, Madureira, nascido em Recreio, Minas) explica:
__ A gente vive sossegado aqui. Os alemães atiram por esses lados, mas nunca veio nenhuma granada muito perto de nossa peça.
__ E que tal a comida?
__ É essa mesma que o senhor conhece. Vai…
Pergunto os nomes dos homens. Sou apresentado então a Arlindo Luís Vivarini, de Petrópolis. É o homem que registra a alça e o sítio, e puxa o cordãozinho que dispara a peça. Depois aperto a mão de Roldão Monteiro da Costa, de Monte Alegre, Estado do Rio. Ele é o “C-3”, quer dizer, o homem que coloca a munição, que “dá o caramelo para o tedesco”, como eles dizem. E esse caramelo, quem lhe entrega é o louro Vily Peter, de Indaiá, Santa Catarina. Anoto depois o nome de Vitírio Pfiffir, de Ipirama, Santa Catarina; e o do Ezequiel José da Silva, Alcibíades José Rodrigues e Henrique Volkmann. Este último está ali somente há duas horas. O telefonista é José Martins Sobrinho. No momento estão presentes o sargento Antônio Francisco de Souza (Rua Nove Horas, 62m Realengo) e Heitor Alves Viana, do Grupo de Comando.
O sargento me disse que o tenente que manda as ordens de tiro pelo telefone é o tenente Brasil Ramos Caiado Filho. O comandante da companhia é o capitão Antônio Carlos de Andrada Serpa – um homem alto de grandes bigodes louros.
Todos fazem questão que eu anote o nome da peça – “Carioca” – e depois me convidam para jantar. Mas o degelo tornou as estradas piores do que nunca, e como é proibido acender faróis, quero chegar ao lugar onde vou dormir antes que anoiteça. Volto à estrada, subo ao jipe – e um dos soldados me diz, na hora que o motor começa a funcionar:
__ Se vai escrever alguma coisa no Diário Carioca, manda dizer ao pessoal lá no Brasil que nós vamos bem. Não estamos fazendo vantagem nenhuma não…mas acho que estamos fazendo nosso serviço direito.
E me abana adeus com os dois pratos de alumínio que tem na mão.
Rubem Braga foi Cronista. Escrito em 15 de fevereiro de 1945 por Rubem Braga, que durante a Segunda Guerra Mundial atuou como de correspondente de guerra junto à F.E.B. - extraída do livro “Crônicas da Guerra na Itália” – Record, 2ª Edição, 1986.
Retiramos este artigo do site alerta total o qual recomendo a leitura e AGRADECEMOS a gentileza pela postagem (Paulo Bastos)